segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

A crise do Carnaval passa pela concentração da riqueza nas mãos de grandes grupos

A entrada do poder público municipal e até mesmo do estadual na disputa por patrocínios, reduziu as possibilidades dos blocos na atração de patrocinadores. Mas a crise maior no Carnaval da Bahia deve-se à concentração da riqueza gerada pela festa nas mãos dos grandes grupos que atuam no mercado do carnaval . E que já estão deixando para trás o negócio-bloco na direção do negócio-camarote.

Esta é a opinião do Doutor em Comunicação e Culturas Contemporâneas, professor e vice-Reitor da UFBa, Paulo Miguez. Não gosta da ideia de circuitos temáticos pois considera que a história do carnaval da Bahia sempre foi tudo meio que junto e misturado.  Diz ainda que a festa é um fenômeno e pede o olhar cuidadoso das mais diversas áreas do conhecimento da vida acadêmica.


Você se tornou um “Doutor em Carnaval”. Como é – na condição de vice-Reitor da UFBa – conciliar a Academia com o espírito de folião?

Sou um apaixonado folião desde sempre. Com certeza, as minhas responsabilidades como vice-Reitor da UFBa não me permitem o acompanhamento mais sistemático dos múltiplos processos que envolvem o carnaval, algo que realizava com regularidade na condição de pesquisador dos festejos. Todavia, se já não tenho como acompanhar o carnaval na qualidade de pesquisador, não me sinto impedido, em qualquer hipótese, de continuar desfrutando, como folião, do prazer da folia carnavalesca.

De que modo o Carnaval – mais que objeto de estudo – é um evento que exige o envolvimento das universidades?

O carnaval é um elemento central da cultura baiana, o que, por si só, é mais do que suficiente para justificar – mais correto mesmo é dizer exigir – o envolvimento de uma instituição como a Universidade. Carregado de história, plural, complexo, o carnaval é, assim, um fenômeno que solicita, permanentemente, o olhar cuidadoso das mais diversas áreas do conhecimento que compõem a vida acadêmica.

O Carnaval ganhou alterações radicais desde o início dos anos 50 até os dias atuais. Por que mudou tanto, desde quando o “coração da festa” era a Rua Chile?

A primeira coisa que mudou, e muito, diga-se de passagem, foi a cidade do Salvador. Mudou a cidade, mudou também, por óbvio, sua festa maior, o carnaval. Na direção da configuração contemporânea dos festejos carnavalescos em Salvador, a primeira e mais importante mudança foi, certamente, a genial criação/invenção do trio elétrico, na exata metade do século passado. Com o trio elétrico, muda tudo: a música, a dança, a configuração sócio-espacial da festa; a participação popular passa a ser a marca do carnaval de Salvador. Nova e profunda mudança só vai acontecer na metade dos anos 1970, com a emergência dos blocos afros. Estas novas organizações da juventude negra da cidade, pela via da afirmação étnico-estético-política, promovem intensa renovação não apenas do carnaval mas também, e muito profundamente, da cena cultural baiana no seu conjunto. Nos anos 1980, nova inflexão de peso. A axé music, com suas muitas estrelas, entra em cena; o trio elétrico é capturado pelas cordas dos blocos, então transformados em empresas; estabelece-se uma potente economia da festa. Agora, de seis ou sete anos para cá, novas mudanças vêm se anunciando, especialmente por conta da fadiga do modelo que hegemonizou os festejos dos anos 1980 para cá e que teve no negócio-bloco seu carro-chefe.

O que deixou de dar certo na festa sob o aspecto econômico? Há uma crise no modelo de concentração dos recursos de anunciantes junto ao Governo do Estado e Prefeitura, em detrimento das entidades, para a organização do Carnaval?
Vejo como positivo para a vocação pós-industrial da cidade de Salvador a consolidação de uma economia do carnaval. O problema, portanto, não é a existência de práticas mercantis na festa. O problema é a ausência de regulação deste mercado, o que aconteceu ao longo das últimas décadas com o carnaval, sempre em desfavor da sua dimensão simbólica, ou seja, da condição do carnaval como bem cultural, sempre, também, na direção da concentração da apropriação da riqueza gerada pela festa nas mãos dos grandes grupos que atuam no mercado do carnaval. As atuais mudanças a que me referi mais atrás sugerem fortemente que este modelo está em crise. Uma das razões desta crise é, ao que parece, a entrada do poder público municipal na disputa por patrocínios, reduzindo, assim, as possibilidades dos blocos na atração de patrocinadores. Mas a crise deve-se, em particular, à reorientação do mercado carnavalesco que está deixando para trás o negócio-bloco na direção do negócio-camarote.

O Carnaval foi reduzido a um festival de cervejas, inclusive com o loteamento da cidade para as cervejarias?

A festa, pelo tamanho que tem, exige do poder público, tanto da Prefeitura quanto do Governo do Estado, que têm a responsabilidade de garantir a logística e a infraestrutura indispensáveis para que o carnaval aconteça – segurança, saúde, gestão de trânsito, limpeza pública, iluminação, apoios às entidades carnavalescas, etc. – uma grande mobilização de recursos financeiros para sua realização. Daí, a necessidade de atrair patrocinadores junto a grandes empresas de vários setores, como o caso das cervejarias.

O que é necessário para manter o espírito livre do Carnaval frente às grandes entidades que passaram a controlar a festa? A tendência dos blocos e trios sem cordas voltou para ficar?

Aqui é inescapável o papel do poder público, especialmente da Prefeitura da cidade, responsável mais direto pela festa. Seja na regulação das práticas mercantis, para impedir que estas subordinem a dimensão simbólica da festa aos seus interesses; seja na implementação de políticas de cultura, indispensáveis para garantir a diversidade de manifestações carnavalescas e a proteção do carnaval como bem cultural. Quanto ao lugar dos blocos e dos trios independentes na configuração dos festejos que resultará desta crise do modelo de negócios da festa – com as cordas perdendo importância em favor dos camarotes – creio que ainda é cedo para qualquer afirmação.

Você acredita ser necessária a criação de novos circuitos seja no Rio Vermelho, no Comércio. Há outras opções ?

Não gosto da ideia de circuitos temáticos. Creio que isto está em total desacordo com a história do nosso carnaval. No carnaval da Bahia, o bom é que sempre foi tudo meio que junto e misturado. O que não significa dizer que para acomodar seu crescimento o carnaval não venha a necessitar da ampliação dos seus espaços na cidade.

No Rio de Janeiro e São Paulo vem ocorrendo o resgate dos blocos de bairros. Como entender a decadência e o fim ou redução no número dessas entidades, a exemplo dos “blocos de índios”, em Salvador?

Particularmente, do ponto de vista da organização territorial, os carnavais do Rio de Janeiro e São Paulo são bastante distintos do carnaval de Salvador, o que nos sugere os devidos cuidados com qualquer exercício de comparação. O que me parece absolutamente semelhante, tanto lá, nos carnavais carioca e paulistano, quanto cá, no carnaval de Salvador, é a rebeldia com que Momo se insurgiu contra seu aprisionamento num modelo único de festejos: lá, rompendo com a exclusividade do desfile espetacularizado das escolas de samba; aqui, capturando mais dias para a folia e fazendo água no negócio de cordas & abadás. A questão da diminuição do tamanho e da importância dos blocos de índios parece que tem a ver com mudanças mais antigas, isto é, com o fato de que boa parte dos jovens que compunham estes blocos migraram, já nos anos 1970, para os blocos afro.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Minha primeira caminhada

*
Roberto Gazzi*
As nuvens ajudaram ontem os que têm fé. Pois se à Lavagem do Bonfim “quem tem fé vai a pé”, elas ajudaram até os menos fiéis como eu a vencer os 8 quilômetros entre a Igreja da Conceição da Praia e a Colina Sagrada do Bonfim. Até umas gotas de chuva ajudaram a aliviar o calor em alguns trechos. O mormaço, esse não teve como contornar. Mas a caminhada não é nada difícil. Ao menos fora da procissão oficial. Como bom paulista, cheguei cedo à Praça Cayru, que começava a receber os muitos grupos que se reúnem ali para a caminhada. E lá vem descendo povo à Cidade Baixa, seja pela Avenida  Contorno ou pelo Elevador Lacerda. Parece um Réveillon diurno, quase todos de branco.Quando estoura a primeira queima de fogos, às 8h08, caem umas gotas de chuva. Que é fraca e para logo. Às 8h48, o segundo foguetório anuncia o início da caminhada do prefeito. E não é que caem umas gotas de novo? Quem para um pouco na calçada pode ver o movimento do cortejo. A maioria é de grupos vestidos com camisetas iguais. Aqui e ali aparece um que chama mais a atenção, como os de mamelucos, ou o Pierrô de Plataforma, de nove integrantes, que mantém uma tradição carnavalesca que vem da mortalha, de muitas décadas atrás. No meio do circuito, de repente se misturam o cheiro do perfume das jarras de flores das baianas, o cheiro da comida feita nas centenas de barraquinhas e o fedor de mijo, que em Salvador, infelizmente, parece onipresente.A massa vai seguindo até chegar ao início da colina. A coluna com a multidão de branco já pertinho da igreja impressiona. Como impressiona descobrir que, de repente, você está ao lado da igreja, algo que parecia impossível visto lá de baixo. E começa a missa. Fiéis rezam e saúdam o santo. Muitos choram. E numa ruazinha na lateral da igreja, a 10 metros do Bonfim, um bar liga um som altíssimo com músicas de pagode. Uma pequena multidão se forma em minutos, muitos deles sambando no meio da rua. Missa e samba se misturam. A Bahia, religiosa e profana, como sempre imaginei lendo Jorge Amado e vendo aquelas fotos em preto e branco. Oito quilômetros depois pude conferir isso, agora ao vivo e em algumas poucas cores além do branco.
* Roberto Gazzi é jornalista e diretor-executivo do CORREIO DA BAHIA