quarta-feira, 22 de abril de 2009

Nem só turistas vivem em Salvador

Angelina Bulcão*
A poluição sonora, já considerada típica de Salvador, se amplia assustadoramente apesar da Lei do Silêncio existente.
Inevitáveis são as construções que tornaram a cidade num canteiro de obras.
Mas as festas pré e pós carnavalescas se emendam o ano inteiro. As tradicionais comemorações juninas já têm características de pagodes. E recentemente, até uma imagem de Cristo desfilou em trio elétrico no circuito Barra-Ondina, numa manifestação promovida por uma igreja alternativa.
Ninguém discorda que o carnaval traz, para a cidade, empregos, milhares de dólares, etc. Mas é impossível ignorar que, em Salvador, também se trabalha, apesar da fama que o baiano ganhou de preguiçoso... fama, por sinal, já desmentida em tese de doutoradoda prof. Elisete Zanlorenzi, PUC Campinas
Inegavelmente, tais eventos causam transtornos para alguns bairros, dificultando a entrada e saída dos moradores de suas ruas, dos estudantes irem/voltarem do colégio, e impedem aqueles que trabalham, se concentrarem ou dormirem por causa do barulho que já se torna crônico.
Uma pequena venda de rua começa oferendo cigarros, balas, cerveja. Logo depois, surge uma mesa, quatro cadeiras. E não demora, várias mesas, várias cadeiras que se espalham pela calçada. Eis que a barraca dá origem a uma festa de largo...
Festas-de-largo, lavagens, passeatas não dão direito a feriados àqueles cujas obrigações impedem de dançar ou ensaiar durante o verão inteiro...
É possível constatar também que o barulho não ocorre apenas em locais situados longe de residências. Praticamente todos os bairros têm um clube, e/ou um hotel, e/ou uma igreja, com possantes autofalantes.
Automóveis com portas abertas deixam escapar um som que arromba os tímpanos. A disputa entre a potência foi proibida, mas basta o policial se afastar, para tudo recomeçar. E os protestos já provocaram tragédias recentemente, segundo os noticiários locais.
As queixas de pessoas que residem longe de certas casas de shows só fazem comprovar que os aparelhos de som destas casas ultrapassam os decibéis para poderem ser ouvidos à distância! Festas de alguns hotéis são escutadas por vários km, uma vez que o vento é capaz de espalhar o som, quando este ultrapassa o volume permitido.
Só quem quer fazer ouvidos moucos ignora os efeitos nocivos da poluição sonora na saúde física e mental. Distúrbios do sono e da saúde em geral no cidadão urbano foram revistos na literatura científica dos últimos 20 anos. Em vígilia, o ruído de até 50 decibéis (dB) pode perturbar, mas é adaptável. A partir de 55 dB provoca estresse leve, excitante, causando dependência e levando a durável desconforto. O estresse degradativo do organismo começa a cerca de 65 dB com desequilíbrio bioquímico, aumentando o risco de infarte, derrame cerebral, infecções, osteoporose etc. Provavelmente a 80 dB já libera morfinas biológicas no corpo, provocando prazer e completando o quadro de dependência. Em torno de 100 dB pode haver perda imediata da audição. Por outro lado, o sono, a partir de 35 dB, vai ficando superficial, à 75 dB atinge uma perda de 70 % dos estágios profundos, restauradores orgânícos e cerebrais.
A surdez causada por ruídos é um problema que preocupa os médicos. "Mesmo parcial, esse tipo de dano é irreversível", declarou o otorrinolaringologista Antônio Celso Nassif, presidente da Associação Médica Brasileira a uma revista informativa. O ideal é evitar, se possível, expor-se a ruídos muito intensos.
Adolescentes parecem ignorar os riscos de ouvir música em alto volume. As crianças pequenas também correm risco pois os brinquedos estão cada vez mais barulhentos".
Os repórteres Sergio Berezovsky/Carlos Fenerich, em uma matéria publicada na referida revista, anunciaram um levantamento realizado no final do ano passado pela Sociedade Brasileira de Otologia. A associação dos médicos especialistas em ouvidos, mediu a audição de mais de 60000 pessoas em todo o país. Entre os consultados que disseram não ter nenhuma deficiência (cerca de 10% do total), 40% não escutavam direito. Nas cidades maiores e mais barulhentas, é maior a seriedade do problema: mais da metade dos que julgavam ouvir perfeitamente já não conseguiram captar alguns sons agudos (o primeiro indício de danos auditivos provocados por exposição aos ruídos). "Essas pessoas poderão ter problemas mais graves depois que passarem dos 60 anos", afirmou Ricardo Ferreira Bento, presidente da Sociedade Brasileira de Otologia e professor da Universidade de São Paulo. "A partir dessa idade, a capacidade auditiva começa a diminuir naturalmente." Esse é um caso de difícil prevenção. Ninguém se expõe por escolha própria ao barulho de um congestionamento nem ouve uma britadeira porque quer. E quem reclama contra as festas e manifestações é acusado de intolerante e inimigo do paraíso tropical.
Assim somos obrigados a suportar este tormento, disfarçado em chavões tais como, "o verdadeiro espirito da alegria de um povo", "manifestações populares e autênticas de uma cultura genuína", "querem calar a Bahia", etc.
Nem todo mundo aprecia e está disposto a ouvir este tipo de "manifestação artística", este é um direito inalienável do cidadão, salvo nos regimes de força. A psicanalista Eugênia Carvalho, em protesto enviado ao jornal 'A Tarde' pergunta: Será que vivemos sob a ditadura e o estigma do trio elétrico, com seus decibéis ensurdecedores e sua zoeira dissonante? Esta não seria então também uma forma de fascismo?
Tudo em nome da divulgação da "boa terra", cujo mote deveria ser "aqui pode tudo", onde não há limites entre o espaço privado e o espaço público, semblante de paraíso perdido tropical, "esquema" sustentado por uma política neo-liberal para incrementar a industria turística a qualquer preço.

* Escritora e psicóloga

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